IFRS 16 em revisão: a norma cumpre sua finalidade?

IFRS 16 em revisão: a norma cumpre sua finalidade?

11 minutos de leitura

Em 2019, entrou em vigor a norma IFRS 16 que trata exclusivamente de arrendamentos. Tal IFRS substituiu a IAS 17, que classificava os arrendamentos em financeiros e operacionais com o seguinte tratamento contábil:

  • Arrendamentos financeiros: registrados no balanço patrimonial como ativos e passivos (similar a uma compra financiada).
  • Arrendamentos operacionais: tratados como despesas no resultado, sem serem reconhecidos no balanço.

Contudo, a IFRS 16 eliminou essa classificação dos arrendamentos operacionais e financeiros, exigida pela norma anterior (IAS 17 – Arrendamentos), e introduziu um modelo contábil de arrendatário único, determinando que esse arrendatário:

  • reconheça ativos e passivos para todos os arrendamentos com prazo superior a 12 meses, a menos que o ativo seja de baixo valor;
  • reconheça a depreciação dos ativos de arrendamento (ativos de direito de uso) separadamente dos juros sobre passivos de arrendamento na demonstração do resultado; e
  • classifique os pagamentos em dinheiro para a parcela principal dos passivos de arrendamento dentro das atividades de financiamento e a parcela de juros dos passivos de arrendamento, de acordo com os requisitos da IAS 7 – Demonstração dos Fluxos de Caixa.

A partir da implementação da IFRS 16, tivemos algumas mudanças significativas na contabilidade, as quais veremos abaixo. Vale salientar que a norma trouxe consigo a expressão “direito de uso do ativo”, de modo que entraram nessa rubrica, inclusive, os antigos leasings (arrendamentos) financeiros.

Reflexões sobre a aplicabilidade da IFRS 16

A IFRS 16 (Arrendamentos), desde a sua implementação, tem sido amplamente incorporada pelas empresas. No entanto, a sua aplicabilidade ainda suscita debates relevantes, tanto que, no momento, o International Accounting Standards Board (IASB) está conduzindo uma revisão pós-implementação (Post-Implementation Review – PIR) da IFRS 16.

Essa etapa, atualmente em consulta pública, busca compreender os efeitos da norma nas demonstrações contábeis e identificar eventuais oportunidades de aprimoramento com base nas experiências práticas das entidades ao redor do mundo.

Levando isso em consideração, um dos primeiros pontos que merecem nossa reflexão sobre a IFRS 16 é o seguinte: faz sentido reconhecer, nas demonstrações contábeis, os contratos executórios? Antes de responder a essa pergunta, contudo, é fundamental compreender o que são contratos executórios.

Segundo o CPC 00 (R2), um contrato executório é aquele no qual nenhuma das partes cumpriu substancialmente suas obrigações. Ou seja, ambas ainda estão sujeitas a obrigações recíprocas. Em regra, nesse estágio não se reconhecem ativos nem passivos, pois ainda não houve um evento que justifique, sob a ótica contábil, o registro de um direito ou de uma obrigação. Em outras palavras, isso significa que esses contratos permanecem “fora do balanço” (off balance sheet), a menos que uma norma contábil específica determine o contrário.

Um exemplo simples pode nos ajudar a ilustrar essa situação: imagine que uma empresa tenha firmado um contrato para adquirir uma determinada mercadoria, mas ainda não tenha recebido o bem nem tenha efetuado o pagamento. Nesse caso, tanto o direito de receber quanto a obrigação de pagar se anulam momentaneamente e não são reconhecidos na contabilidade.

Contudo, a IFRS 16 (CPC 06 R2) representa uma exceção relevante a essa regra. A partir de sua vigência, contratos de arrendamento passaram a ser reconhecidos nas demonstrações contábeis do arrendatário, mesmo quando ainda não houve a execução substancial do contrato. Na realidade, a norma exige o reconhecimento de um ativo de direito de uso – representando o benefício econômico associado ao uso do bem – e de um passivo de arrendamento – correspondente à obrigação de efetuar os pagamentos futuros –, transformando, assim, um contrato tradicionalmente executório em lançamentos com impacto direto no balanço patrimonial.

Além do registro inicial desse “contrato executório”, pode haver outros impactos nas demonstrações contábeis, os quais abordaremos a seguir.

Impactos da IFRS 16 sobre os índices financeiros da empresa

Outra reflexão sobre a aplicabilidade da IFRS 16 diz respeito ao impacto que a norma pode causar nos principais indicadores financeiros, especialmente no EBITDA (Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation and Amortization). Tendo isso em mente, fica o seguinte questionamento: é razoável que uma empresa, sem alterar a sua operação ou gerar mais receita, apresente um EBITDA maior apenas em razão de uma mudança contábil?

Para ilustrar esse efeito, imagine uma empresa que, antes da IFRS 16, apurava um EBITDA de R$ 100 milhões, já considerando uma despesa de aluguel de R$ 12 milhões (como exigido pela IAS 17/CPC 06 original). Contudo, com a adoção da IFRS 16, essa despesa de aluguel deixa de ser reconhecida como gasto operacional e passa a ser substituída por duas novas rubricas: depreciação do ativo de direito de uso e despesa financeira sobre o passivo de arrendamento.

Agora, vamos supor que os mesmos R$ 12 milhões estejam distribuídos da seguinte forma:

  • R$ 11 milhões em depreciação;
  • R$ 1 milhão em despesa financeira.

Nessa hipótese, o novo EBITDA seria de R$ 112 milhões, em vez dos R$ 100 milhões, pois a despesa de aluguel, que impactava diretamente o EBITDA, foi substituída por despesas – depreciação e juros – que ficam fora dessa métrica. Abaixo, segue uma ilustração da Demonstração do Resultado do Exercício (DRE) comparativa entre os dois cenários:

DRE Comparativa – Norma anterior (IAS 17) versus norma atual (IFRS 16)
DRE Comparativa – Norma anterior (IAS 17) versus norma atual (IFRS 16)

Pois bem, como é possível notar na tabela acima, embora o lucro antes dos tributos permaneça o mesmo (R$ 100), o EBITDA aumenta com a adoção da IFRS 16, sem que haja qualquer mudança operacional real. Isso ocorre porque a norma alterou a classificação das despesas, enquanto o custo econômico do contrato permanece o mesmo.

É importante salientar, contudo, que essa mudança pode gerar distorções comparativas e deve ser analisada com cautela, sobretudo em contextos que envolvem:

Um parêntese aqui: na prática, as despesas financeiras sobre arrendamentos são decrescentes ao longo do tempo, enquanto a depreciação costuma ser reconhecida de forma linear, gerando, assim, uma assimetria contábil nos primeiros anos do contrato.

Dando continuidade às nossas reflexões, no que se refere à demonstração do resultado, seria economicamente justificável uma empresa com diversas lojas locadas não apresentar a despesa de aluguel em suas demonstrações contábeis?

Ou, ainda, faz sentido que, sem qualquer mudança operacional, uma empresa passe a registrar um aumento de depreciação e de despesa financeira apenas em função de uma reclassificação contábil? Igualmente, é possível que ocorra uma mudança na taxa de retorno sobre um ativo, sem que qualquer recurso seja aplicado na empresa?

Levando todos esses questionamentos em consideração, é compreensível a escolha de alguns analistas financeiros de excluírem os efeitos contábeis da aplicação da IFRS 16 em suas análises de crédito e performance da empresa.

Agora que discutimos o impacto no EBITDA, exploraremos a origem dessa mudança normativa.

Gerenciamento de contratos – a origem da IFRS 16

Primeiramente, é importante destacar que a IFRS 16 surgiu em resposta à prática contábil anterior, a IAS 17, na qual eram ativados somente os arrendamentos financeiros, ou seja, os contratos que, em sua essência, eram uma compra financiada. Nesse caso, assertivamente, havia um aumento do ativo e do passivo, tal como ocorre em uma compra financiada efetuada por uma entidade.

Porém, com o incremento do passivo, provavelmente algumas empresas passaram a renegociar os contratos antigos e negociar os novos. O principal objetivo dessa prática seria fazer com que esses contratos se assemelhassem a arrendamentos operacionais, isto é, os arrendamentos que não são ativados e tampouco registrados como dívida (sem registro de ativo e passivo).

Esse gerenciamento de contrato causou um descrédito nas demonstrações contábeis das empresas com contratos significativos dessa natureza. Isso resultou em uma iniciativa extremada por parte do IASB, ao obrigar a ativação dos contratos de arrendamentos, aluguéis, direitos de concessão, direitos de uso etc., com raras exceções.

Assim, embora represente avanços importantes em termos de transparência, a norma IFRS 16 ainda apresenta aspectos que merecem revisão. Não se trata de questionar sua validade, mas sim de propor ajustes que aumentem sua efetividade e utilidade prática. 

Um equilíbrio possível?

Possivelmente os aluguéis, sobretudo os de imóveis, não deveriam ser eliminados das despesas com aluguel na demonstração do resultado. Por outro lado, em setores como o de aviação comercial, a norma trouxe avanços relevantes.

Antes da IFRS 16, era comum que empresas aéreas operassem com frotas significativas de aeronaves arrendadas, sem que os respectivos ativos e passivos fossem refletidos nas demonstrações contábeis. Com a nova norma, essa distorção foi corrigida: os contratos passaram a gerar reconhecimento do ativo de direito de uso e do passivo de arrendamento, proporcionando uma representação mais fiel da estrutura financeira dessas companhias.

Processo atual de aprimoramento (“questionamento”) da norma

Em tempo, após esses 5 anos da aplicação da IFRS 16, o IASB  está em processo de revisão da norma. Mas, afinal, o que é esse processo?

O processo de revisão da norma, denominado como “Revisão Pós-implementação” (ou em inglês, PIRPost-implementation Review) é uma etapa formal do processo de manutenção e aprimoramento das normas IFRS. Isso significa que o IASB busca ouvir do mercado o que está funcionando bem e o que poderia ser melhorado, sendo esse um passo prévio e essencial antes de qualquer decisão sobre possíveis ajustes na norma.

O objetivo da Revisão Pós-implementação da IFRS 16 é avaliar basicamente se:

  • os requisitos da IFRS 16, estão, em geral, funcionando conforme o esperado.
  • os benefícios para os usuários das informações preparadas de acordo com a IFRS 16 não são significativamente menores do que o esperado.
  • os custos para os preparadores (tanto da aplicação dos requisitos e da auditoria quanto da execução de sua aplicação) não são significativamente maiores do que o esperado.

Enfim, acreditamos que esse é um momento importantíssimo de reflexão sobre a aplicabilidade da IFRS 16. Sendo assim, precisamos ser críticos – e, talvez, até céticos – quanto ao uso das normas contábeis, pois essa é uma maneira de crescermos profissionalmente e aprimorarmos o nosso senso crítico.

Afinal, o objetivo do relatório contábil-financeiro, conforme definido na Estrutura Conceitual (CPC 00 R2), é fornecer informações contábil-financeiras sobre a entidade que as reporta, sendo úteis a investidores e credores na tomada de decisão relacionada ao fornecimento de recursos para a entidade.

Dessa forma, se a entidade aplica a IFRS 16 e, posteriormente, precisa ajustar ou “reexplicar” os seus reflexos nas demonstrações contábeis para garantir uma apresentação adequada, isso levanta um questionamento importante: a norma está, de fato, cumprindo seu propósito de gerar informação útil, relevante e compreensível?

Avançando um pouco sobre a IFRS 16

Como abordado ao longo deste artigo, embora a aplicação da norma IFRS 16 seja recente, ela está consolidada no ambiente contábil-financeiro. No entanto, isso não significa que sua adoção seja isenta de críticas ou desafios práticos.

O processo atual do IASB de Revisão Pós-implementação (PIR) da norma tem como objetivo o seu aprimoramento. Ou seja, não se trata de revogar a IFRS 16, mas de mantê-la e aperfeiçoá-la com base na experiência prática dos usuários.

Isso significa que o atual processo de Revisão Pós-implementação (PIR), conduzido pelo IASB, reforça que toda norma contábil, por mais bem estruturada que seja, deve ser constantemente avaliada quanto à sua real efetividade, utilidade e aplicabilidade. Esse processo não visa revogar a IFRS 16, mas sim compreender como ela está sendo utilizada na prática e em quais pontos pode ser aprimorada.

Nesse sentido, é essencial que profissionais e empresas mantenham uma postura técnica crítica e atualizada, reconhecendo que a correta aplicação da IFRS 16 exige mais do que conformidade: requer entendimento profundo, julgamento contábil e ceticismo profissional.

A BLB Auditores e Consultores é altamente especializada na aplicação das IFRS, com vasta experiência prática em diversos clientes. Oferecemos suporte completo para a adaptação às normas IFRS, além de serviços de auditoria independente, educação continuada, consultorias tributária e financeira, assim como assessoria em operações de M&A. Para quaisquer dúvidas ou esclarecimentos, entre em contato conosco.

Autoria de Remerson Galindo
Sócio-diretor de Auditoria Independente
BLB Auditores e Consultores

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