O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) é um elemento a ser considerado em qualquer planejamento sucessório e patrimonial. Tendo em vista que sua competência é estadual, as regras e alíquotas podem variar consideravelmente de estado para estado, o que pede um exame atento ao estruturar a transferência de bens e direitos, especialmente por meio de doação.
Nesse cenário, a doação de quotas sociais, particularmente no âmbito de estruturas como as holdings patrimoniais, é uma alternativa frequentemente considerada. Tal mecanismo pode permitir ao titular do patrimônio organizar a transferência de seus bens de forma estruturada, garantindo aos envolvidos maior segurança sucessória e jurídica.
Com base nisso, uma modalidade específica que tem sido objeto de discussões é a doação com reserva de usufruto. Aqui, o doador transfere a nua-propriedade das quotas aos seus herdeiros (donatários), mas pode reter para si o usufruto, ou seja, o direito de usar e gozar do bem.
No caso das quotas, o recurso do usufruto pode refletir na manutenção de certos direitos, como o político – direito de voto sobre as quotas – e o econômico – direito de receber lucros e dividendos –, durante um determinado período ou enquanto o usufrutuário viver. Assim, apenas com a extinção do usufruto é que os donatários consolidariam a propriedade plena, ou seja, passariam a ter a titularidade do bem e a gozar integralmente deles.
Surge, então, a seguinte questão: como o ITCMD incide nessa operação?
A doação com reserva de usufruto e a apuração da base de cálculo do ITCMD
Muito embora uma doação com reserva de usufruto (doação da nua-propriedade) seja motivo para incidência do ITCMD, existem particularidades a serem consideradas a depender do estado responsável pela tributação.
Um aspecto que tem sido observado em algumas legislações estaduais é a previsão de uma base de cálculo diferenciada para o ITCMD na transmissão da nua-propriedade em atos de doação. No estado de São Paulo, por exemplo, a Lei nº 10.705/2000, em seu artigo 9º, § 2º, item 4, estabelece que a “base de cálculo do imposto é o valor venal do bem ou direito transmitido”, mas que pode ser considerada na medida de “2/3 (dois terços) do valor do bem, na transmissão não onerosa da nua-propriedade.” (art. 9º, § 2º, item 4). Essa disposição legal pode resultar em um recolhimento inicial de imposto sobre uma base menor no ato da doação.
Tendo em mente que a legislação de São Paulo (art. 14, § 3º da Lei nº 10.705/2000) prevê que “nos casos em que a ação, quota, participação ou qualquer título representativo do capital social não for objeto de negociação ou não tiver sido negociado nos últimos 180 (cento e oitenta) dias, admitir-se-á o respectivo valor patrimonial (art. 14, § 3º da Lei nº 10.705/2000)”. Isto é, será utilizado o valor do patrimônio líquido (PL).
Assim, imaginemos o seguinte exemplo hipotético: se uma sociedade limitada com patrimônio líquido de R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais), na data da doação, tivesse a totalidade de suas quotas doadas em plena propriedade, a base de cálculo em São Paulo seria de R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais). Com uma alíquota de 4%, o ITCMD devido seria de R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais).
Caso se optasse pela doação da nua-propriedade com reserva de usufruto, a base de cálculo, conforme a referida lei paulista, seria equivalente a 2/3 do valor do PL, ou seja, R$ 4.000.000,00 (quatro milhões de reais). O ITCMD incidente seria, então, de R$ 160.000,00 (cento e sessenta mil reais). É importante notar que esta é uma análise simplificada, e a aplicação prática envolve outras questões a serem consideradas.
Dessa maneira, o caminho para a determinação da base do ITCMD e a possibilidade de uso do valor patrimonial são aspectos que dependem da legislação de cada estado. A análise sobre uma eventual economia tributária e os desdobramentos futuros, como a questão da extinção do usufruto, requerem um exame cuidadoso e individualizado, considerando os riscos e as particularidades de cada situação.
A discussão central: há incidência de ITCMD na extinção do usufruto?
A eventual apuração de um ITCMD inicial sobre uma base de cálculo reduzida, como no exemplo de São Paulo, levanta uma questão fundamental que tem sido objeto de debates e análises: o imposto pago no ato da doação da nua-propriedade seria definitivo? Ou, melhor, poderia haver discussões sobre a necessidade de um pagamento complementar relativo à parcela do valor do bem que não integrou a base de cálculo inicial quando o usufruto se extingue e a propriedade plena se consolida?
Para responder a essa pergunta, é necessário analisar a natureza jurídica da extinção do usufruto e a sua conformidade com as hipóteses de incidência do ITCMD. Nesse contexto, um argumento frequentemente apresentado é que a extinção do usufruto, seja pela morte do usufrutuário, seja por sua renúncia, não configuraria um novo fato gerador do imposto, uma vez que, segundo essa linha de raciocínio, não ocorreria nova transmissão de bens ou direitos.
Levando isso em consideração, é importante refletir sobre a seguinte questão: a propriedade, em sua essência, já teria sido transmitida ao nu-proprietário no ato da doação. Com isso, a extinção do usufruto apenas removeria o ônus que limitava o exercício pleno dessa propriedade, que já existiria antes da extinção do usufruto.
Assim, o nu-proprietário não estaria recebendo um novo bem ou direito com a extinção do usufruto, ele apenas passaria a poder exercer a totalidade dos poderes inerentes ao domínio que já lhe pertenceria juridicamente desde a doação (nua propriedade, no caso). Nessa linha, estaríamos diante da consolidação de um direito – ou seja, agora eu possuo o bem e posso dispor dele –, e não uma nova aquisição patrimonial que ensejaria a tributação pelo ITCMD, cujas hipóteses constitucionais são a transmissão causa mortis e a doação (art. 155, I, CF/88).
Para além dessa linha argumentativa, é importante notar que algumas administrações tributárias estaduais podem ter entendimentos diversos, levando a questionamentos sobre a cobrança do imposto complementar na extinção do usufruto. Tais cobranças de ITCMD, a depender do caso – por exemplo, quando não há previsão legal explícita que defina a “extinção do usufruto” como um fato gerador autônomo do ITCMD –, podem ser contestadas com base no princípio da estrita legalidade tributária (art. 150, I, CF/88).
A análise da legislação e da jurisprudência em diferentes estados, como veremos adiante, demonstra que o tema não é pacífico e que a segurança jurídica pode variar, sendo crucial uma avaliação criteriosa dos riscos e das particularidades de cada caso antes da adoção de qualquer estratégia de planejamento.
Panorama estadual da reserva de usufruto: análise da legislação e da jurisprudência
A discussão sobre a incidência (ou não) do ITCMD na extinção do usufruto não apresenta uma solução uniforme em todo o território nacional. A competência de cada estado para legislar sobre o tema resulta, portanto, em diferentes tratamentos.
Na sequência, apresentaremos os cenários em alguns estados:
a) São Paulo (SP) – a Lei nº 10.705/2000, ao definir a base de cálculo como 2/3 do valor do bem na doação da nua-propriedade (art. 9º, § 2º, 4), não previu de forma explícita a cobrança do 1/3 restante na extinção do usufruto. O Decreto 46.655/2002 busca implementar a sistemática de cobrança do referido 1/3, contudo não há previsão de cobrança na Lei 10.705/2000, o que fundamenta pedidos de defesa da não cobrança, uma vez que apenas a lei pode instituir fato gerador de tributo (art. 97, Código Tributário Nacional). A Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (SEFAZ-SP), por meio da Decisão Normativa CAT-03/2010, manifestou o entendimento de que “a extinção do usufruto, pela morte (ou renúncia) do usufrutuário, não é hipótese de incidência do ITCMD“. Esse posicionamento tem sido, em geral, confirmado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em diversos julgados.
b) Rio de Janeiro (RJ) – o estado do Rio de Janeiro passou por uma evolução legislativa. A lei anterior (Lei nº 1.427/1989) previa a incidência do ITCMD tanto na instituição quanto na extinção do usufruto. A Lei nº 7.174/2015 modificou essa sistemática, passando a dispor o pagamento sobre a base de cálculo aplicável no ato da doação, sem menção expressa à extinção. A tentativa posterior de cobrar o complemento para usufrutos instituídos sob a lei antiga foi objeto de questionamento judicial.
c) Minas Gerais (MG) – em Minas Gerais, a Lei nº 17.272, de 28/12/2007 revogou a possibilidade de pagamento de 2/3 do ITCMD no momento da doação da nua-propriedade.
d) Paraná (PR) – a legislação (Lei nº 18.573/2015, com alterações) estabelece que nas “doações com reserva de usufruto ou na sua instituição gratuita a favor de terceiro, o valor dos direitos reais do usufruto, uso ou habitação, vitalício ou temporário, será igual à metade do valor do total do bem, correspondendo o valor restante à sua propriedade separada daqueles direitos” (art. 20). Complementarmente, há um normativo da SEFA/PR indicando que “nas doações com reserva de usufruto, deve recolher o Imposto de Transmissão ‘Causa Mortis’ e Doação – ITCMD sobre 50% do valor do bem, sendo devido o restante por ocasião de sua extinção, conforme determinam os artigos 20 e 47 da Lei nº 18.573, de 1º de outubro de 2015” (Consulta SEFA nº 75 de 10/10/2020). Quanto à incidência do ITCMD no momento da extinção do usufruto, a referida lei prevê, em seu art. 9º, inciso V, que não incide ITCMD “na extinção de usufruto ou de qualquer outro direito real, que resulte na consolidação da propriedade plena”.
Contudo, é crucial pontuar que mesmo um cenário aparentemente consolidado pode estar sujeito a revisões futuras, e cada caso concreto demanda uma análise individual.
Análise de possíveis implicações no planejamento sucessório e patrimonial
Na hipótese de a legislação estadual não prever a incidência do ITCMD no momento da extinção do usufruto, há algumas possíveis implicações futuras a serem consideradas.
Uma das implicações levantadas é a de natureza econômica. Se, em um determinado estado, o ITCMD for recolhido apenas no ato da doação da nua-propriedade (por consequência, sobre uma base de cálculo reduzida), e não houver cobrança complementar na consolidação futura da propriedade, poderia haver uma aparente diminuição da carga tributária da sucessão. No entanto, essa aparente vantagem inicial deve ser ponderada com os riscos de questionamentos fiscais futuros, mudanças legislativas ou jurisprudenciais, e as particularidades de cada caso, que podem alterar significativamente o resultado final.
Por exemplo, poderia haver tributação se, entre a doação da nua-propriedade e a extinção do usufruto, o Poder Legislativo estadual aprovasse uma modificação da lei no sentido de prever expressamente que a extinção do usufruto fosse fato gerador do ITCMD? Em caso positivo, e se a alíquota do ITCMD for maior no momento da extinção do usufruto?
Se utilizarmos o estado de São Paulo como exemplo, com dois projetos de lei propondo a instituição de alíquotas progressivas tramitando na Assembleia Legislativa – para mais informações, confira o artigo “ITCMD em São Paulo: uma análise comparativa dos PLs 7/2024 e 409/2025”, de autoria da consultora Gabriela Prieto Borges –, caso já houvesse a implementação de uma alíquota maior a ser aplicada no momento da extinção do usufruto e do pagamento do ITCMD sobre o 1/3 restante (conforme exemplo anterior), haveria uma tributação maior a depender da alíquota aplicada.
Nesse cenário, o planejamento patrimonial teria sido desenhado de uma forma, mas seria concretizado de outra. Assim, considerando ser faculdade do contribuinte pagar o ITCMD sobre uma base menor na doação com reserva de usufruto, quando permitido pelo estado, torna-se necessário avaliar os riscos envolvidos.
Por fim, é fundamental reiterar que a implementação de qualquer estratégia de planejamento sucessório, incluindo a doação da nua-propriedade com reserva de usufruto, exige uma análise aprofundada e individualizada.
Planejamento sucessório com ITCMD requer análise atenta
A legislação e a jurisprudência em diferentes estados apresentam variações significativas quanto ao tratamento tributário da operação analisada, especialmente no que se refere à incidência ou não do ITCMD no momento da extinção do usufruto e na consequente consolidação da propriedade plena.
Em alguns estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, há interpretações que tendem a não exigir o pagamento complementar do ITCMD na extinção do usufruto. Esse entendimento baseia-se na premissa de que não haveria uma nova transmissão de bens nesse momento, mas apenas a consolidação de um direito preexistente. Contudo, em outros estados, o cenário pode ser distinto, com posições que consideram a extinção do usufruto como fato gerador autônomo do imposto.
Assim, é importante ressaltar que, mesmo nos estados onde a tese da não incidência parece mais consolidada, não há garantias absolutas de que esse entendimento permanecerá inalterado ao longo do tempo. Mudanças legislativas, novas interpretações administrativas ou revisões jurisprudenciais podem modificar significativamente o panorama, criando contingências fiscais inesperadas para planejamentos realizados sob premissas anteriores.
Diante desse cenário de incertezas e variações, a abordagem mais prudente é considerar a doação da nua-propriedade com reserva de usufruto como uma alternativa que, embora possa apresentar certas vantagens em determinadas circunstâncias, também carrega, quando feita a opção pelo pagamento em base de cálculo reduzida, riscos e complexidades que não devem ser subestimados. A decisão de adotar ou não essa estrutura deve ser precedida de uma análise minuciosa e individualizada, considerando não apenas o potencial benefício tributário imediato, mas também os possíveis reflexos futuros, que podem não ser os desejados.
A assessoria de profissionais especializados em direito tributário e sucessório é indispensável para uma avaliação criteriosa dos riscos e benefícios envolvidos, bem como para a estruturação adequada da operação, caso se opte por seguir esse caminho.
Com atuação consolidada no mercado, a Consultoria Societária e Patrimonial do Grupo BLB está à disposição para auxiliar nas especificidades de cada caso. Entre em contato conosco.
Autoria de Bruno Chiarella e revisão técnica de Liz Azevedo
Consultoria Societária e Patrimonial
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