No universo do direito empresarial, poucas ideias são tão persistentes e equivocadas quanto a crença de que o registro de ações de uma Sociedade Anônima (S.A.) em seu Livro de Ações próprio poderia, de alguma forma, conferir a isenção de impostos. Essa confusão, embora compreensível para quem se inicia no tema, parte de uma premissa fundamentalmente incorreta.
O registro no Livro de Ações é um ato de natureza exclusivamente societária, destinado a organizar as relações entre a empresa e seus acionistas. Isso significa que ele não tem o poder de isentar a S.A. de suas obrigações tributárias, uma vez que essas são baseadas em fatos econômicos concretos, como o faturamento e o lucro.
Assim, o cumprimento das formalidades societárias, embora essencial, não se confunde nem substitui a necessidade de apurar e recolher os tributos devidos ao Estado. Portanto, entender a diferença entre essas duas esferas de obrigações é crucial. Para uma melhor compreensão do tema, é indispensável diferenciar, primeiramente, os campos do direito societário e do tributário, dois mundos que, embora se apliquem à mesma entidade, operam sob lógicas distintas.
Direitos e deveres: uma distinção fundamental
De modo geral, toda Sociedade Anônima opera simultaneamente em dois universos jurídicos distintos. O primeiro é o mundo societário, que rege a relação interna da empresa com seus proprietários, os acionistas. O segundo é o mundo tributário, que governa a relação externa da empresa com o Estado, isto é, o Fisco. Em outras palavras, o primeiro trata da propriedade jurídica formal, enquanto o segundo se ocupa dos eventos econômicos substantivos que geram riqueza.
Contudo, a recorrente confusão entre esses dois mundos deu origem ao mito da isenção fiscal em relação ao registro das ações. Sendo assim, a compreensão do escopo e da abrangência de cada uma dessas esferas nos permite analisar o Livro de Ações pelo que ele realmente é: uma ferramenta de organização societária, e não um instrumento fiscal.
Ações nominativas ao portador e transferíveis por endosso: a origem da confusão
Grande parte da confusão sobre a suposta “isenção fiscal” das Sociedades Anônimas nasce de um equívoco histórico: a antiga existência das ações ao portador.
Antes da proibição imposta pela Lei nº 8.021/1990, esse tipo de ação era emitido sem a identificação do proprietário, isto é, quem possuía fisicamente o certificado era considerado o dono, o que tornava praticamente impossível rastrear a titularidade. Por anos, essa característica alimentou a crença de que os acionistas de companhias detentores de ações ao portador gozavam de certo “anonimato fiscal”.
Com o fortalecimento das normas de transparência e combate à evasão, o Brasil aboliu definitivamente as ações ao portador, determinando a conversão de todas elas para o formato nominativo, o único admitido hoje pela Lei das S.As. Nas ações nominativas, o nome do acionista é registrado no Livro de Ações Nominativas, e qualquer transferência deve ser formalmente anotada e assinada pelo cedente e pelo cessionário.
Esse registro garante rastreabilidade e segurança jurídica, mas também estabelece que, embora o conteúdo do livro seja sigiloso para terceiros, ele não confere anonimato frente ao Fisco. Trata-se, portanto, de um sigilo societário, voltado à proteção das relações internas da companhia, e não de um sigilo fiscal.
Há, ainda, as ações nominativas transferíveis por endosso, um modelo híbrido que permite a circulação do título por meio de endosso no próprio certificado, mas que só produz efeitos plenos após o registro no livro da companhia. Essa forma busca equilibrar agilidade na transferência e controle societário, sem qualquer impacto no campo tributário. Na prática, a diferença entre esses tipos de ações é apenas organizacional, relacionada à forma de registro e de transferência, e não tem qualquer reflexo na tributação da empresa.
A verdadeira função do Livro de Ações
O Livro de Ações é, em essência, o “registro público executivo” da Sociedade Anônima. Sua finalidade não é fiscal, mas sim a de garantir a segurança jurídica e a transparência nas relações entre a companhia e seus membros.
Qualquer que seja o tipo de ação registrada, a função do livro permanece estritamente no âmbito societário, uma vez que ele organiza a estrutura de propriedade, mas não interfere na realidade econômica que gera a obrigação de pagar impostos.
Nesse sentido, é justamente nas situações de transferência de ações que mais surgem interpretações equivocadas sobre essa suposta “isenção” ou neutralidade fiscal. Isso ocorre especialmente em operações ligadas a planejamento patrimonial e sucessório, como doações, transmissões causa mortis e cessões onerosas.
A cessão não onerosa de ações — utilizadas com frequência em planejamentos sucessórios — realizadas meramente por meio dos livros de transferências de ações e de registro de ações nominativas não afasta a incidência do ITCMD decorrente da transmissão gratuita do bem.
Assim, persiste a falsa ideia de que a simples transferência registrada nos livros, sem a respectiva alteração na Junta Comercial competente, por exemplo, não seria perceptível ao Fisco e afastaria o imposto incidente. Contudo, isso não é verdade. A mesma lógica se aplica às transmissões causa mortis: as ações integram o espólio e são sujeitas ao ITCMD, independentemente do momento em que o formal de partilha é registrado no Livro de Ações da companhia.
Já nas transferências onerosas — como a compra e a venda de ações —, o registro societário da cessão não substitui a obrigação de apurar eventuais ganhos de capital nem dispensa o adquirente e o alienante de declarar a operação à Receita Federal. O Livro de Ações apenas formaliza a mudança de titularidade perante a companhia, mas não interfere nas obrigações tributárias que decorrem do negócio jurídico subjacente.
Em síntese, em qualquer forma de transferência — gratuita, onerosa ou sucessória — o registro no Livro de Ações produz efeitos exclusivamente societários, e não altera a incidência dos tributos pertinentes à operação.
O fato gerador: a origem real da obrigação tributária
A base para a tributação em uma S.A. reside em suas atividades econômicas, não em seus registros internos de propriedade. Uma S.A. é tributada com base na receita, nos ganhos sobre investimentos e em outras formas de remuneração que a empresa aufere. Isso significa que o simples ato de registrar uma ação no livro não constitui um fato gerador de impostos sobre a atividade empresarial.
Nesse contexto, a legislação tributária é clara ao definir que, não obstante a forma como as ações são registradas, uma S.A. deve pagar os tributos correspondentes às suas operações, assim como seus acionistas em decorrência da transferência da titularidade das ações. Alguns exemplos incluem:
- Impostos sobre Propriedade e Transmissão: como qualquer outra pessoa jurídica, a S.A. deve pagar impostos como o IPTU (sobre imóveis urbanos), o ITBI (na compra de imóveis) e o ITCMD (em casos de doação de bens ou direitos).
- Tributos sobre o Lucro: a tributação incide sobre o resultado positivo da empresa, por meio do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
- Tributos sobre faturamento/receita: contribuições como o PIS (Programa de Integração Social) e a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) são aplicadas diretamente sobre a receita gerada pela atividade empresarial.
Outro ponto essencial é que, independentemente do nível de transparência que o Fisco tenha sobre as operações societárias, permanece integralmente com o contribuinte a obrigação de declarar os atos de transferência, bem como de apurar e recolher os tributos decorrentes. Mesmo que a Receita Federal possa acessar informações por meio da escrituração contábil digital, e-Financeira, documentos de inventário, ECF, ou outras obrigações acessórias, isso não exime acionistas, empresas ou espólios do dever de informar corretamente a operação em suas declarações.
Assim, o contribuinte deve declarar doações, cessões, partilhas e transmissões de ações, recolher ITCMD quando devido, apurar eventual ganho de capital em transferências onerosas e manter documentações comprobatórias das operações. O sigilo do Livro de Ações é societário, e não fiscal. Assim, a obrigação tributária nasce e se mantém sem depender desse registro.
Muitos confundem o sigilo societário das ações nominativas com uma suposta isenção fiscal das S.As. A ideia de que o Estado não teria acesso à titularidade das ações foi, equivocadamente, associada à noção de que a S.A. seria “invisível” para o Fisco. Mas isso não é verdade. A Receita Federal tem acesso integral às informações contábeis, societárias e financeiras das companhias, inclusive das Sociedades Anônimas. Assim, a natureza nominativa das ações garante a privacidade interna, mas não afasta o dever de cumprir todas as obrigações tributárias.
Clareza para uma gestão consciente
O registro de ações e a obrigação de pagar impostos operam em esferas jurídicas distintas e independentes, de modo que a formalidade societária de registrar uma ação não anula a realidade econômica que gera o dever tributário. É preciso, de um lado, organizar a estrutura societária de acordo com a lei, mantendo os livros de registro em ordem. De outro, e de forma separada, é fundamental cumprir rigorosamente todas as obrigações fiscais que nascem das operações da empresa.
Agir de outra forma não apenas revela um profundo desconhecimento da lei, mas também expõe a sociedade a multas, penalidades e sérios riscos à sua governança corporativa e continuidade.
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Autoria de Letícia Izo e revisão técnica de Liz Azevedo
Consultoria Societária e Patrimonial
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