Tributação da sucata: regras vigentes e reconfiguração com a Reforma Tributária

Tributação da sucata: regras vigentes e reconfiguração com a Reforma Tributária

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Como o sistema tributário brasileiro vê operações que envolvem reciclagem e como fica a cadeia de tributação da sucata com a Reforma Tributária?

O setor de reciclagem no Brasil é marcado por uma significativa informalidade e pela atuação de agentes economicamente vulneráveis, como coletores pessoas físicas, que, cada vez mais, têm recorrido à formação de associações e cooperativas para formalizar suas atividades e garantir maior segurança jurídica. Trata-se de um segmento essencial para a movimentação da economia, com reflexos diretos na preservação ambiental, na saúde pública e no cumprimento de metas de sustentabilidade, razão pela qual tem sido objeto de estímulo por parte da iniciativa privada e de constante monitoramento pelos órgãos reguladores.

Nesse cenário, as operações envolvendo sucata e materiais recicláveis ocupam uma posição peculiar no sistema tributário brasileiro. Embora representem atividades de evidente relevância socioambiental, essas operações enfrentam desafios estruturais e fiscais que tensionam a coerência de um dos princípios tributários mais importantes: o regime da não cumulatividade.

Reconhecendo tais especificidades, o legislador instituiu tratamentos tributários diferenciados para PIS e Cofins — tributos atualmente vigentes no ordenamento jurídico brasileiro —, especialmente por meio da suspensão da incidência nas etapas iniciais da cadeia produtiva. Contudo, a operacionalização da não cumulatividade ensejou relevantes controvérsias, dentre elas, a vedação ao aproveitamento de créditos nas aquisições de sucata, posteriormente consolidada pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 304.

O regime atual: suspensão e controvérsia jurisprudencial

O tratamento tributário das operações com sucata e demais materiais recicláveis é disciplinado, principalmente, pelo art. 5º da Lei nº 10.147/2000 e pelos artigos 47 e 48 da Lei nº 11.196/2005. O art. 48 estabelece a suspensão da incidência do PIS e da Cofins nas vendas de desperdícios, resíduos e aparas destinados a pessoas jurídicas tributadas pelo lucro real, enquanto o art. 47 impõe a vedação ao creditamento na aquisição desses insumos, produzindo, em conjunto, a impossibilidade de aproveitamento de créditos pelo adquirente.

Trata-se, portanto, de um regime de diferimento em que a tributação se desloca para a etapa posterior, ou seja, no momento do faturamento do produto industrializado. Esse modelo normativo, entretanto, foi alvo de intensa controvérsia judicial: as empresas do setor de reciclagem sustentavam que a vedação ao crédito implicava aumento indevido da carga tributária sobre seus produtos, além de violar o princípio da isonomia ao favorecer a indústria extrativista e contrariar políticas constitucionais de proteção ambiental e de promoção da livre concorrência.

A União, por sua vez, defendia a constitucionalidade dos dispositivos, argumentando que a suspensão das contribuições nas operações anteriores buscava preservar os pequenos fornecedores, muitas vezes catadores em situação de vulnerabilidade, que comercializam resíduos, aparas e sobras. Nessa perspectiva, como não há incidência nas etapas iniciais, também não poderia haver crédito por parte dos adquirentes.

Do ponto de vista econômico, a controvérsia envolve efeitos distintos sobre as cadeias produtivas. O industrial que utiliza matéria-prima virgem, embora pague mais pelos insumos, já que o fornecedor incorpora no preço o valor das contribuições recolhidas, obtém créditos de PIS e Cofins sobre suas aquisições, reduzindo o custo tributário final.

Em contraste, o industrial que adquire resíduos, desperdícios ou aparas não tem direito ao crédito, elevando seu custo tributário, ao passo que tende a pagar menos pelos insumos, justamente porque o fornecedor está desonerado na etapa anterior. Trata-se, contudo, de uma comparação aproximada, pois a formação de preços no mercado competitivo é influenciada por múltiplos fatores — estrutura produtiva, escala, tecnologia, eficiência gerencial, entre outros —, não havendo garantia de repasse exato das cargas tributárias.

O impacto da decisão do STF no RE nº 607.109 (Tema 304)

O panorama se alterou com o julgamento do Recurso Extraordinário nº 607.109 (Tema 304 da Repercussão Geral), ocorrido em junho de 2021. Naquela ocasião, o Supremo Tribunal Federal declarou: “são inconstitucionais os arts. 47 e 48 da Lei nº 11.196/2005, que vedam a apuração de créditos de PIS/Cofins na aquisição de insumos recicláveis”.

Com essa decisão, as empresas que utilizam insumos recicláveis e se encontram submetidas ao regime não cumulativo passaram a apurar créditos sobre tais aquisições. O entendimento do STF restabeleceu a isonomia tributária ao eliminar tratamentos diferenciados baseados no tipo de insumo empregado e reforçou princípios constitucionais ligados à sustentabilidade ambiental.

Entretanto, a declaração de inconstitucionalidade do art. 48 produziu efeitos adversos nos elos iniciais da cadeia, atingindo sobretudo cooperativas menores e pessoas físicas. Sem a suspensão, essas entidades passam a ter suas saídas tributadas e sem possibilidade de créditos nas entradas, já que muitas podem ter sua tributação no lucro presumido. O resultado é o aumento do custo dos materiais recicláveis vendidos à indústria, devido ao acréscimo da carga tributária que é repassado ao preço final.

Esse novo cenário cria um efeito competitivo relevante: ao perderem a suspensão e continuarem sem direito a créditos, as cooperativas tributadas pelo lucro presumido passam a operar em desvantagem em relação às cooperativas e empresas recicladoras tributadas pelo lucro real. Assim, a decisão tende a estimular a migração dessas cooperativas para o regime do lucro real, de modo a viabilizar o aproveitamento de créditos e manter a competitividade no fornecimento de insumos recicláveis para indústrias que também estão no regime não cumulativo.

Já para as empresas tributadas pelo lucro real, o impacto fiscal geral tende à neutralidade, pois a tributação das saídas se compensa com o tratamento das entradas (tributadas ou não tributadas, com ou sem crédito). Dessa forma, nota-se que os efeitos mais significativos recaem sobre as estruturas menores da cadeia de reciclagem, que agora, diante desse novo incentivo econômico e regulatório, precisam readequar seu regime de tributação para não perderem espaço no mercado.

A tributação da sucata com a Reforma Tributária (LC 214/2025)

A Lei Complementar (LC) nº 214/2025 veio para sanar essa lacuna na decisão do STF. Por meio do seu art. 170, a LC estabelece um regime de créditos presumidos para os contribuintes de IBS e CBS que adquirirem resíduos sólidos de pessoas físicas, associações e cooperativas de catadores pessoas físicas para destinação final ambientalmente adequada.

O crédito presumido concedido ao adquirente funciona como um instrumento de equilíbrio econômico, mitigando a desvantagem competitiva que as cooperativas não tributadas pelo lucro real tinham em relação às cooperativas e empresas tributadas por esse regime antes da Reforma Tributária.

Isso significa que, a partir da Reforma, a fruição do crédito passa a ser independente do regime de tributação da empresa. Assim, de acordo com o novo modelo, esses créditos são calculados sobre o valor da compra dos resíduos, com percentuais crescentes para o IBS e um valor fixo para a CBS:

Tributação da sucata: regras vigentes e reconfiguração com a Reforma Tributária

Tal medida cria um incentivo econômico significativo para que as empresas ampliem a compra de recicláveis diretamente de catadores e cooperativas, fortalecendo a logística reversa, promovendo a inclusão social e reduzindo o envio de resíduos para aterros. Entretanto, o benefício não se aplica a determinados materiais cujo risco ambiental, periculosidade ou cadeia própria de logística reversa justifiquem a sua exclusão, como agrotóxicos, medicamentos, pilhas, pneus, eletroeletrônicos, óleos lubrificantes, lâmpadas e sucata de cobre. A única exceção parcial é o óleo lubrificante usado quando coletado por empresas autorizadas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

Na prática, esse regime tende a gerar efeitos relevantes em diversos setores produtivos. Indústrias alimentícias, por exemplo, poderão ser estimuladas a adquirir resíduos como papelão, plásticos rígidos ou flexíveis, provenientes da coleta de cooperativas, incorporando-os em processos de reciclagem ou reuso em embalagens secundárias. No agronegócio, fábricas de ração, beneficiadoras de grãos e agroindústrias podem aproveitar resíduos orgânicos ou materiais de embalagem limpos para compostagem ou reciclagem mecânica. Já indústrias de metais, especialmente siderúrgicas e metalúrgicas, podem ampliar a compra de resíduos metálicos recicláveis (com exceção do cobre), como aço e alumínio, fechando ciclos produtivos e reduzindo a necessidade de matéria-prima virgem.

Dessa forma, ao atrelar o benefício fiscal à destinação correta, a legislação cria um mecanismo de mercado que acelera a transição para modelos mais sustentáveis de produção, consumo e tratamento de resíduos.

Integração conceitual entre a LC 214/2025 e a Política Nacional de Resíduos Sólidos

A Lei Complementar nº 214/2025, ao instituir o regime de créditos presumidos de IBS e CBS para a aquisição de resíduos sólidos, fundamenta-se diretamente nos princípios previstos na Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), disciplinada pela Lei nº 12.305/2010. O ponto de partida dessa integração é o próprio conceito de “resíduos sólidos”, definido no art. 3º, XVI, da PNRS, como material descartado em estado sólido ou semissólido cuja destinação final demande tratamento específico. A LC 214/2025 adota essa noção como elemento delimitador do benefício fiscal, uma vez que o crédito presumido se aplica às aquisições de resíduos sólidos com destinação final ambientalmente adequada (art. 170).

Além disso, a categoria de “coletores incentivados” (prevista na LC 214/2025), abrangendo pessoas físicas, associações e cooperativas que realizam coleta, triagem e comercialização de resíduos sólidos, corresponde aos agentes priorizados pela PNRS em suas diretrizes de inclusão socioeconômica. Nesse sentido, a Lei nº 12.305/2010 determina o fortalecimento de cooperativas de catadores e sua participação nos sistemas de gestão de resíduos, enquanto a LC 214/25 operacionaliza esse comando ao vincular o crédito presumido às aquisições realizadas junto a tais agentes.

Por fim, a LC 214/2025 incorpora expressamente o conceito de “destinação final ambientalmente adequada” previsto no art. 3º, VII, da PNRS, que compreende processos de reutilização, reciclagem, compostagem, recuperação e outras formas autorizadas pelos órgãos competentes. A fruição do crédito presumido exige que o adquirente comprove que os resíduos foram encaminhados a uma dessas destinações ambientalmente adequadas, reforçando o alinhamento normativo entre a política tributária e a política ambiental.

Assim, a LC 214/2025 utiliza os conceitos jurídicos estruturantes da PNRS como base para conformar seu regime de incentivos, atribuindo a eles consequências fiscais que buscam fomentar a economia circular, fortalecer a cadeia de reciclagem e induzir o cumprimento das metas de gestão ambiental previstas na Lei nº 12.305/2010.

Reflexos na política de logística reversa e na agenda ESG

Nos últimos anos, a sustentabilidade deixou de ser apenas uma tendência e passou a ocupar uma posição central nas estratégias das grandes corporações. Ao mesmo tempo, observa-se que os consumidores valorizam cada vez mais empresas comprometidas com a adoção de práticas socioambientais responsáveis.

Nesse contexto, ganham ainda mais relevância os investimentos em políticas de ESG (Environmental, Social, and Governance), especialmente entre organizações que buscam alinhar sua operação a critérios ambientais, sociais e de governança. Esse movimento tem sido tema constante em nossas análises, incluídos nos artigos produzidos por nossa equipe, como “IFRS S1 e S2: o fechamento contábil no contexto ESG” e “ESG: o futuro do mundo corporativo”, nos quais destacamos as principais tendências e oportunidades para empresas que desejam evoluir nessa agenda.

Esse tipo de investimento estimula modelos de negócios sustentáveis e, simultaneamente, proporciona um retorno financeiro, consolidando uma relação de benefício mútuo no mercado. Sob essa perspectiva, o tratamento da tributação da sucata conecta-se diretamente às políticas de logística reversa e à agenda ESG, reforçando a relevância da gestão responsável de resíduos e da economia circular no ambiente empresarial.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos, citada anteriormente, estabelece a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, ao exigir que fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes implementem sistemas de retorno de materiais recicláveis. A mesma lei também prevê medidas para prevenir e reduzir a geração de resíduos, incentivar hábitos de consumo mais sustentáveis e ampliar a reciclagem e a reutilização de materiais.

Seu objetivo é assegurar que resíduos com valor econômico sejam reaproveitados e que os rejeitos — aqueles que não podem ser reciclados ou reutilizados — recebam destinação ambientalmente adequada.

Com o novo modelo instituído pela LC 214/2025 e a efetiva implementação da PNRS, verifica-se um alinhamento crescente entre a tributação e as políticas ambientais, transformando o sistema tributário em um instrumento de incentivo à economia circular.

Nesse contexto, o novo desenho normativo cria incentivos concretos para a valorização dos recicláveis, a inclusão socioeconômica dos catadores e a consolidação de práticas empresariais ambientalmente responsáveis, de modo a aproximar o sistema tributário brasileiro das exigências contemporâneas de desenvolvimento sustentável.

Diante desse panorama, observa-se que a Reforma Tributária não apenas corrige as distorções geradas pelo antigo regime de PIS e Cofins, como também reposiciona a tributação como ferramenta de fomento à sustentabilidade. Ao reequilibrar a cadeia de reciclagem por meio dos créditos presumidos e ao alinhar o sistema tributário às diretrizes da Política Nacional de Resíduos Sólidos e à agenda ESG, a LC 214/2025 reforça a transição para um modelo produtivo baseado na economia circular.

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Autoria de Gabriela M. Costa e revisão técnica de Alessandra de Lima
Consultoria Tributária
BLB Auditores e Consultores

 

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