Saiba o que dizem a orientação OCPC 01 e outras normas contábeis e como deve ser realizada a Contabilidade em empresas de incorporação imobiliária.
A incorporação imobiliária apresenta peculiaridades contábeis que a distinguem de outros segmentos, como o varejo ou a indústria de manufatura. Enquanto o varejo lida com ciclos operacionais curtos e o giro constante de estoques, a manufatura, assim como a incorporação imobiliária, foca na transformação de matérias-primas em produtos acabados. No entanto, a principal diferença é que a incorporação imobiliária opera em um horizonte temporal prolongado, com projetos que frequentemente se estendem por anos.
Embora esses setores tenham dinâmicas operacionais distintas, a contabilidade em todos eles têm o mesmo propósito: garantir transparência e confiabilidade para a tomada de decisão de investidores, gestores e demais partes interessadas. Para isso, é essencial o alinhamento com a Orientação OCPC 01 – Entidades de Incorporação Imobiliária e os pronunciamentos técnicos contábeis emitidos pelo CPC, que serão abordados ao longo deste texto.
Isto posto, antes de avançarmos, verificaremos dois conceitos fundamentais: a definição de uma incorporação imobiliária e o que constitui o patrimônio de afetação.
Definições
Conceito de incorporação imobiliária
A incorporação imobiliária é a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas, conforme o artigo 28 da Lei nº 4.591/1964.
Nesse contexto, a incorporadora é quem promove e realiza a incorporação imobiliária. Ela não executa diretamente a construção, mas é a responsável por toda a estruturação e viabilização do empreendimento imobiliário, o que inclui aquisição do terreno, aprovação de projetos, captação de recursos e venda das unidades antes ou durante a construção.
Em outras palavras, a incorporadora se responsabiliza pela entrega das obras concluídas, cumprindo os prazos, os preços e as condições determinados.
Já a construtora é uma empresa especializada na execução de obras, que atua diretamente na construção física de edificações. Ela é responsável por colocar em prática o projeto de engenharia e arquitetura, além de gerenciar a mão de obra, os materiais, os equipamentos e os serviços necessários para a execução do empreendimento imobiliário.
Conceito de patrimônio de afetação
Trata-se de uma proteção jurídica que garante que o dinheiro de um empreendimento seja usado apenas nele, impedindo que seja utilizado para pagar dívidas de outras obras da incorporadora. Suas principais características são:
- Segregação patrimonial: o patrimônio de afetação não se mistura com o patrimônio geral da incorporadora. Caso a incorporadora enfrente problemas financeiros, isto é, seja declarada falida, o patrimônio de afetação não será usado para pagar dívidas de outros negócios.
- Finalidade exclusiva: os recursos arrecadados somente podem ser usados na construção e na entrega do próprio empreendimento.
- Regime contábil: a incorporadora deve separar as receitas, as despesas, os custos e os ativos relacionados ao empreendimento afetado, seguindo uma contabilidade individualizada.
- Regime Especial de Tributação (RET): permite a opção pelo RET, previsto na Lei nº 10.931/04, com alíquota fixa de 1,92% sobre a receita bruta para IRPJ e CSLL (ou 4%, incluindo PIS e Cofins).
Tratamentos contábeis na incorporação imobiliária
Formação do custo do imóvel
O custo de um imóvel vai muito além da mão de obra e dos materiais, incluindo também gastos com a compra do terreno, aprovação do projeto, tributos e juros de financiamentos. Ter um bom controle desses custos é essencial para calcular adequadamente o preço de venda.
Despesa com comissão de venda
As comissões pagas, em regra, não são lançadas imediatamente como despesa. Inicialmente, esses valores são registrados no ativo, no grupo de “despesas antecipadas“, e apropriados ao resultado de forma compatível com o reconhecimento da receita da venda do imóvel. Esse tratamento segue a lógica contábil de associar os custos às receitas correspondentes, garantindo que o resultado contábil reflita corretamente o desempenho da operação.
Contudo, há situações em que essa despesa deve ser reconhecida imediatamente, como nos casos em que a venda é cancelada ou quando há evidências de que o comprador não conseguirá pagar os valores contratados. Nesses casos, a empresa deve lançar a comissão como despesa no período em que o evento ocorrer.
O tratamento contábil das despesas com comissão de venda está alinhado com as diretrizes do CPC 47 – Receita de Contrato com Cliente, que estabelece o reconhecimento da receita e a apropriação proporcional dos custos associados à venda.
Despesa com propaganda, marketing, promoção e outras atividades correlatas
Diferentemente dos custos diretamente ligados à construção, os gastos com publicidade, marketing e promoções não são ativados como parte do custo do imóvel. Ou seja, esses gastos não podem ser diferidos para serem reconhecidos apenas na entrega das unidades imobiliárias. Em vez disso, eles devem ser registrados como despesas com vendas, sendo reconhecidos no resultado do período em que forem incorridos, conforme o regime de competência.
Gastos com a construção do estande de vendas e do apartamento-modelo
Os custos envolvidos na construção e na decoração de estandes de vendas e apartamentos-modelos, incluindo mobílias e outros acabamentos, são registrados como ativos imobilizados, conforme orientado pelo CPC 27 – Ativo Imobilizado. Esses ativos são depreciados ao longo do período em que se espera utilizá-los, refletindo sua vida útil. Caso sejam usados por menos de um ano, podem ser reconhecidos como despesa de vendas.
Permuta física
As operações de permuta são bastante comuns no setor imobiliário, especialmente quando um proprietário cede um terreno em troca de unidades do empreendimento a ser construído.
Se a troca envolver bens de mesma natureza e valor equivalente – como um apartamento por outro apartamento ou um terreno por outro terreno – não há reconhecimento de ganho ou perda. Isso ocorre porque a transação é vista como uma simples substituição de ativos sem substância comercial.
Por outro lado, se a permuta envolver bens de naturezas ou valores diferentes, como um apartamento trocado por um terreno, a contabilidade trata a operação como uma transação com substância comercial. Nesse caso, pode haver a necessidade de registrar um ganho ou uma perda, e o reconhecimento da receita deve ser feito com base no valor justo do ativo recebido ou, caso esse valor não possa ser mensurado com confiabilidade, no valor do bem entregue.
Já no caso da permuta de terrenos por unidades futuras do empreendimento, o terreno recebido pela incorporadora deve ser contabilizado pelo seu valor justo (CPC 46 – Mensuração do Valor Justo), compondo o estoque de imóveis a comercializar. Em contrapartida, o compromisso da incorporadora de entregar as unidades ao proprietário do terreno deve ser reconhecido como um adiantamento de clientes no passivo.
Provisão para garantia
Após a entrega das chaves de um imóvel, a incorporadora ainda tem um compromisso importante: a garantia contra eventuais problemas na construção. Para isso, deve constituir provisões para garantia, conforme previsto no CPC 25 – Provisões, Passivos Contingentes e Ativos Contingentes.
Essa provisão deve ser estimada com base em dados técnicos e históricos de manutenção, considerando os custos normalmente incorridos com reparos e assistência técnica após a entrega dos imóveis. O valor provisionado é contabilizado no passivo, podendo ser classificado como circulante ou não circulante, dependendo do prazo esperado para a sua utilização.
Ajuste a valor presente
O Ajuste a Valor Presente (AVP) é essencial na incorporação imobiliária, pois reflete o impacto do tempo sobre os fluxos financeiros das transações. Conforme estabelecido pelo CPC 12 – Ajuste a Valor Presente, sempre que houver um intervalo entre o reconhecimento contábil de um direito ou uma obrigação e seu efetivo recebimento ou pagamento, é necessário mensurar esse efeito, garantindo que os valores registrados reflitam sua realidade econômica.
No caso das receitas da incorporação imobiliária, o reconhecimento do AVP ocorre da seguinte forma:
- Antes da entrega das chaves: o ajuste é apropriado como receita de incorporação imobiliária.
- Após a entrega das chaves: os valores são reconhecidos como receita financeira.
É importante destacar que os adiantamentos de clientes (valores recebidos antecipadamente pela incorporadora) são classificados como passivos não monetários e, portanto, não estão sujeitos ao ajuste a valor presente, conforme determina o CPC 12.
Operação de cessão de recebível imobiliário
A cessão de recebíveis é uma estratégia para antecipar fluxos de caixa e melhorar a liquidez do empreendimento. Seu registro contábil deve refletir a substância econômica da operação, considerando se a incorporadora mantém controle, direitos, riscos ou obrigações sobre os créditos cedidos.
Se a incorporadora ainda detiver qualquer desses elementos, os recebíveis permanecem no ativo como contas a receber, e os valores obtidos na cessão são registrados como passivo (financiamento). A classificação contábil segue os critérios abaixo:
Se qualquer um desses critérios for atendido, a cessão é tratada como passivo, sem baixa dos recebíveis. Caso contrário, a operação é reconhecida como venda, removendo o ativo do balanço.
Para mais detalhes sobre essa operação, recomendamos a leitura do artigo sobre alocação dos descontos de títulos nas demonstrações contábeis.
Reconhecimentos das receitas
O CPC 47 (IFRS 15) estabelece que o reconhecimento de receita deve refletir a transferência do controle do bem ou do serviço ao cliente. Esse processo pode ocorrer de duas formas:
- Reconhecimento em um momento específico (Método das Chaves): a receita é reconhecida no momento da entrega das chaves ao cliente, quando ocorre a transferência do controle.
- Reconhecimento ao longo do tempo (Método Percentual of Completion): a receita é reconhecida conforme a construção do empreendimento avança, à medida que a transferência do controle ocorre de forma contínua.
Como funciona o Método Percentual of Completion (POC)?
No método POC, a receita é reconhecida de acordo com o progresso da obra, isto é, à medida que a empresa incorre custos para a execução do empreendimento. Assim, para calcular o percentual de conclusão (POC), utiliza-se a razão entre o custo incorrido até o momento e o custo total orçado do projeto.
A fórmula é:
POC = | Custo incorrido até o momento |
Custo total orçado do projeto |
Com esse percentual, calcula-se a receita a ser reconhecida da seguinte forma:
Receita reconhecida = POC x Vendas contratadas
Além disso, é fundamental que o custo total orçado do empreendimento seja estimado no lançamento do projeto e revisado periodicamente para refletir as atualizações no progresso da obra.
Exemplo prático do Método POC:
Imagine que uma incorporadora esteja desenvolvendo um empreendimento com um custo total orçado em R$ 10 milhões. Até o momento, ela já incorreu em custos de R$ 4 milhões, sendo que o valor das vendas contratadas é de R$ 15 milhões.
a) Cálculo do Percentual de Conclusão (POC):
POC = | R $ 4M | = | 0,4 (ou 40%) |
R$ 10M |
b) Reconhecimento da receita:
A receita a ser reconhecida será:
Receita reconhecida = 0,4 x R$ 15M = R$ 6M
Portanto, a incorporadora reconheceria R$ 6M de receita até o momento, com base no progresso da obra.
Pontos importantes para a (não) aplicação do Método POC
O reconhecimento de receita pelo método POC depende de um requisito essencial: a incorporadora deve garantir que seus controles internos atendam a um padrão mínimo aceitável, conforme o propósito a que se destinam.
Em outras palavras, é necessário que os controles internos permitam sua operacionalização com integridade, verificabilidade e confiabilidade, possibilitando ajustes imediatos no reconhecimento de receitas e custos, conforme orientado pela CVM no Ofício Circular/CVM/SNC/SEP nº 02/2018, sobre a aplicação do CPC 47 (IFRS 15).
Esse controle interno robusto permite que a empresa ajuste de forma confiável tanto a estimativa de custos quanto a de receitas à medida que o projeto avança. Caso haja revisões nos custos orçados, os ajustes deverão ser refletidos no reconhecimento de receitas e custos, em conformidade com o princípio da competência.
Conclusão
Na medida em que as empresas buscam oportunidades de crescimento por meio de financiamento para os seus empreendimentos, é natural que os provedores de recursos (credores, investidores etc.) exijam uma contabilidade acurada e, preferencialmente, com demonstrações financeiras auditadas.
Embora tenhamos abordado conceitualmente diversas normas contábeis aplicáveis às entidades de incorporação imobiliária, o tema não foi esgotado. Por isso, é fundamental estudar e entender as normas contábeis em profundidade. Sabemos que, no dia a dia, essa tarefa não é simples para os profissionais, e, por isso, a assistência de uma equipe especializada em contabilidade é essencial para apoiar sua empresa.
A equipe do Grupo BLB é especializada na aplicação das normas IFRS, com vasta experiência em auditoria, consultoria tributária, societária, patrimonial, além de finanças e M&A. Oferecemos suporte completo para a adaptação às normas contábeis, auditoria das demonstrações financeiras e diagnósticos técnicos, garantindo a conformidade e a transparência para a sua empresa.
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Remerson Galindo de Souza
Sócio-diretor de Auditoria Independente
BLB Auditores e Consultores